Monteiro Lobato viveu em tempos de escravidão e da cultura cafeeira. Na região onde hoje é a cidade de Taubaté, ora estava na cidade, ora no sítio de seu avô, cuja biblioteca, desde cedo, Lobato vivia a bisbilhotar. Isso soa familiar? Como ele, Pedrinho também adora o sítio da avó e os diversos livros que ficam por lá. Parte do dia a dia deste grande escritor está representado em sua obra de diversas maneiras. Além das demandas sociais da época. “Ele incluía, não somente na obra infantil, mas também em seus contos, elementos de seu cotidiano e pessoas com quem convivia. Também se inspirava em memórias de sua infância e em pessoas que conheceu ao longo dos anos”, diz o professor Emerson Tin, doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp. Emerson é um dos curadores do time de especialistas com as quais a FTD Educação contou ao escolher os títulos que seriam publicados a partir de 2019. Além da curadoria, Emerson fez a revisão técnica das obras e criou o glossário da coleção Reinações de Narizinho e as notas de “rodabraço”, que vêm nas laterais das páginas, para a coleção Maravilhas de Lobato.
Segundo o especialista, os livros infantojuvenis de Lobato têm características atemporais que os fazem ser lidos por sucessivas gerações. Nesta entrevista, Emerson fala das inspirações do escritor, sua importância para o leitor contemporâneo e o porquê de seu legado ser tão forte e pujante ainda hoje.
Qual é a importância de Monteiro Lobato para a história literária brasileira?
Emerson Tin - Creio que, para o leitor de hoje, é importante saber que a obra de Monteiro Lobato foi pioneira e revolucionária. Lobato sacudiu a literatura para crianças que se fazia até então, trazendo um universo lúdico, repleto de imaginação e fantasia. Inaugurou, assim, uma estrada que seria trilhada por grandes escritores da literatura infantil brasileira como Ruth Rocha, Ana Maria Machado, Ziraldo, entre tantos outros.
Em que medida o universo lobatiano está representado no contexto atual e como reverbera no universo infantil contemporâneo?
Emerson Tin - Não é possível imaginar o que seria a literatura infantil no Brasil se a obra de Lobato não tivesse existido. Muitos dos escritores, como disse antes, são tributários do universo infantil lobatiano e reconhecem esse fato. Mas não é só isso. A obra de Lobato – destinada ao público infantil, porém clássica – tem características atemporais que a fazem ser lida por sucessivas gerações. Além disso, muitos dos temas que aparecem em seus livros – brincadeiras, aventuras, viagens, o desejo de aprender –, bem como as características das crianças de ontem, de hoje e de sempre – a curiosidade, a teimosia, o espírito de aventura, a necessidade de assumir posição diante do mundo – fazem com que sua obra ainda reverbere no universo infantil de hoje.
Quais são as referências e as fontes de Lobato para a criação de seus personagens?
Emerson Tin - Creio que de tudo um pouco: seu dia a dia e de muitos que viviam ao seu redor, referências de filósofos e historiadores, entre tantas outras inspirações. Ele incluía, não somente na obra infantil, mas também em seus contos, elementos de seu cotidiano e pessoas com quem convivia. Também se inspirava em memórias de sua infância e em pessoas que conheceu ao longo dos anos.
Lobato também se inspirou em cartas que as crianças escreviam para ele. Como elas aparecem ao longo de sua obra e como influenciaram suas histórias?
Emerson Tin - Lobato foi um grande escritor de cartas, talvez um dos maiores da literatura brasileira. Entre as pessoas com quem se correspondeu, há várias crianças que tinham uma natural curiosidade em escrever para o criador do universo que as encantava. Há, inclusive, registros de alguns correspondentes que acabaram sendo incorporados na obra lobatiana, como Alariquinho, filho de seu amigo Alarico Silveira, que aparecia no livro O circo de escavalinho, de 1929. Há também a Rãzinha, que, ao lado de Emília, é responsável por vários acontecimentos em A reforma da natureza, de 1941. Rãzinha, ou Maria de Lourdes, era carioca e sugestões suas foram incorporadas no livro pelo escritor. Essa relação com seus correspondentes mirins já foi objeto de estudo de vários pesquisadores, entre os quais, Eliane Santana Dias Debus e Raquel Afonso da Silva.
Em muitas obras há referências à mitologia grega – tema muito apreciado por Lobato – como isso se destaca em seus livros?
Emerson Tin - Lobato parece, mais do que qualquer escritor modernista, ter levado às últimas consequências o conceito oswaldiano de “antropofagia”. É assim que devem ser vistas suas apropriações não só da mitologia, mas também da literatura europeia – contos de fadas ou Dom Quixote, por exemplo. Afinal, pode haver algo mais antropofágico do que o Minotauro sequestrando a Tia Nastácia para que ela cozinhe os famosos bolinhos ou que a cozinheira se utilize do escudo de Dom Quixote como gamela para colocar linguiças em salmoura? Creio que seja dessa forma que a mitologia se destaca na obra de Lobato: os mitos aparecem vivos, dessacralizados, incorporados ao cotidiano dos personagens.
Qual foi o critério adotado para selecionar e elaborar as notas de rodapé das coleções do projeto da FTD Educação?
Emerson Tin - Na verdade, não foram as notas de rodapé, mas notas de “rodabraço”, pois não aparecem no pé da página, elas estão na margem lateral do texto. O critério que adotamos foi o da mínima intervenção possível. Inserimos comentários apenas naqueles pontos cuja compreensão dependesse do que viesse anotado. Em alguns livros, inclusive, essas notas ganharam um aspecto lúdico, sendo de “responsabilidade” de um personagem da história: em A reforma da natureza, por exemplo, ficam a cargo da Borboleta Azul, que comenta o conteúdo apresentado. Regidos pela mínima intervenção possível também incluímos um glossário, que vem no final da edição, evitando a poluição visual das páginas que se destinam, por excelência, ao texto lobatiano e às ilustrações. Destaco ainda que as edições da FTD Educação se diferenciam pelo cuidado em sua apresentação, tanto do ponto de vista textual – com um cotejo de edições –, quanto do gráfico, com ilustrações que atraem a atenção de crianças e adultos. Convivendo em harmonia, o texto e as ilustrações dessas edições são um convite à leitura, individual ou compartilhada, em casa ou na sala de aula.