Um missivista aficcionado

Um missivista aficcionado

A troca de correspondências entre Lobato e seus leitores mostra como as crianças influenciaram as histórias do escritor

Logo que se pilhou sozinha, Emília escreveu para a sua amiga Rã e a convidou para ir ao Sítio do Picapau Amarelo reformar a natureza. A companheira da boneca nessa empreitada tão divertida não era apenas uma invenção de Lobato, mas também uma inspiração em uma menina real: a carioca Maria de Lourdes, que se correspondeu por muito tempo com o escritor e cujas ideias foram usadas no livro A reforma da natureza. Diversas crianças não só influenciaram a criação de passagens das histórias de Lobato, como também apareceram em seus livros. Em O Picapau Amarelo (1939), por exemplo, um grupo de leitores reais visita o Sítio.

“É muito singular essa relação de Lobato com seus leitores mirins, especialmente com a Maria de Lourdes, a Rã, já que muitas de suas sugestões foram de fato aproveitadas por Lobato. Para ele, trocar cartas com as crianças era uma forma de termômetro, uma espécie de feedback”, nos conta a doutora em Teoria e História Literária, Raquel Afonso da Silva, que se debruçou sobre essa relação em sua tese de doutorado defendida na Unicamp.

O casco do Quindim pintado com as imagens da Branca de Neve e os Anões é outro exemplo da “intervenção” de Maria de Lourdes no livro. “Percebemos pelas cartas enviadas que A reforma da natureza é quase que escrita a quatro mãos”, relata Patrícia Tavares Raffaini, pesquisadora e historiadora, cuja tese Pequenos poemas em prosa analisa o papel dessas correspondências na obra de Lobato. “As crianças tinham visões muito interessantes e perspicazes a respeito do que liam. Teciam comentários sobre as narrativas, os assuntos abordados, mas também emitiam opiniões com relação ao formato dos livros, tamanho, capa, ilustradores”, completa ela.

Fernando Paixão, professor do IEB - Instituto de Estudos Brasileiros da USP e autor da biografia de Monteiro Lobato presente nos livros publicados pela FTD Educação, acredita que a correspondência com seus leitores era uma espécie de laboratório para Lobato, como uma forma de aprimorar o seu experimento literário. “Ele queria ser lido e vender muitos livros, então tinha que escrever de maneira a ser compreendido. Isso não quer dizer que ele aceitasse qualquer crítica ou sugestão. Veja o caso de Reinações de Narizinho, apesar de ter sofrido inúmeras reformulações, mantém a mesma identidade. Na verdade, ele só incorporava a sugestão com as quais concordava”.

Infelizmente, nem todo o material dessa rica troca entre o escritor e seus leitores foi preservado ou guardado. Hoje, a maior parte dos documentos disponíveis está no IEB da USP. Ao todo são 321 correspondências, das quais 246 são cartas e desenhos infantis. Nem todas estão datadas, mas a maior parte compreende o período de 1932 a 1946. Há algumas correspondências também na Unicamp, na Biblioteca Monteiro Lobato e as publicadas na obra adulta do autor. “As respostas de Lobato aos leitores, por exemplo, aparecem menos. No entanto, ao analisar as que conseguimos encontrar, percebemos que o autor gostava de dar contornos reais aos seus leitores e para seus personagens, como se eles existissem além da ficção. Lobato, por exemplo, chega a responder uma carta como se fosse o Visconde”, diz Raquel Afonso.


O papel da escola na mediação de leitura

Lobato também visitava escolas para ter uma maior proximidade com seu público e foi um dos escritores precursores desse movimento. “Embora as cartas naquele momento tivessem sido muito mais de cunho pessoal e a mediação escolar tenha ganhado um contorno mais contundente nas décadas seguintes, Lobato sabia da importância da escola para incentivo da leitura e para a divulgação de suas obras”, afirma Raquel Afonso.

Como escritor, dialogava com os pressupostos teórico-metodológicos do ideário escolanovista, em moda na década de 1930. Na época, o contato que ele mantinha com as escolas que visitava se transformava em pedidos de doação de livros para instituições ou para que participasse como patrono de clubes de leitura e bibliotecas escolares. Essa aproximação aparece em suas obras como em Serões de Dona Benta e Emília no País da Gramática.

Segundo a pesquisadora Patrícia Raffaini, nesse período, as crianças faziam alguns comentários sobre o que estavam aprendendo e como as obras de Lobato os havia ajudado. A obra Gramática de Emília foi uma das mais comentadas. Há cartas que destacam como as crianças conseguiram aprender com a leitura da obra. Uma leitora chamada Wanda Cortez escreveu numa carta: “O Sr. tem um modo simples de dizer as coisas difíceis que elas se tornam logo fáceis”.


Uma relação de sucesso

Hábil para retratar o dia a dia, Lobato fazia grande sucesso com as crianças porque investia nessa proximidade e dava prioridade para as conversas com o público infantil. “Acredito que essa preocupação do autor, esse contato que ele fazia questão de priorizar, se refletia nos assuntos abordados pela correspondência. Os leitores se tornavam de fato próximos, íntimos dele. Podemos perceber isso pela forma como a correspondência se inicia, de Prezado Sr. Monteiro Lobato, nas primeiras trocas, para Querido Lobato, ou Lobato amigo”, conta Patrícia Raffaini.

No entanto, essa característica não explica isoladamente porque este missivista cativou leitores em diversas gerações. Para Fernando Paixão, a maior contribuição de Lobato está no seu estilo, no modo gracioso e dinâmico em contar suas histórias. Isso pode explicar o seu sucesso até os dias de hoje. “Lobato foi um homem dotado de muito talento, o que o torna uma figura especial em nossa literatura. Como editor e escritor, ele conseguia perceber o livro em todas as suas implicações – inclusive a do leitor. Foi por isso que tentou, a todo custo, criar as bases de uma literatura infantil que mostrasse a vida brasileira e seus tipos característicos. O Sítio do Picapau Amarelo não deixa de ser um microcosmo da vida nacional, apesar de toda a fantasia das histórias. E isso foi determinante para o seu sucesso”, conclui.

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